O Brasil começou a fazer a primeira tradução da Constituição para o nheengatu, a língua geral da Amazônia, em uma iniciativa "divisora de águas, com alto valor simbólico e político", como explica em uma entrevista à ANSA o coordenador do projeto e presidente da Biblioteca Nacional, Marco Lucchesi.
"A Constituição brasileira é uma resposta à ditadura militar. É uma composição longa e em contínua atualização. Um passaporte cheio de selos e carimbos que foram necessários para atingir a forma democrática, em um momento de grande tensão", disse o estudioso ítalo-brasileiro, de origens toscanas.
"Por muitos anos, falava-se que o Brasil era um país de uma só língua. Evidentemente, uma provocação ideológica, uma tentativa de cancelar uma riqueza enorme: um patrimônio de milhares de línguas, como testemunha também a obra do antropólogo José Ribamar Freire Bessa, a "Rio Babel", observa.
Essa iniciativa, destaca Lucchesi, marca uma "reconquista das línguas ameaçadas pelo genocídio dos últimos 500 anos, e mais recentemente, pelo governo de [Jair] Bolsonaro". "É uma maneira de acender os faróis sobre aquela zona que sempre foi considerada matéria escura, inexistente e monoglota. É a demonstração que se trata, ao invés disso, de uma matéria de luz, de línguas, de liberdades, parte da grandiosa polifonia dessa nação", pontua.
O projeto, destinado a ter novos impulsos, nasceu por vontade da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Rosa Weber, durante uma viagem ao Vale do Javari, na Amazônia, onde foram assassinados no ano passado o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Phillips.
Na viagem, encontrou-se com membros dos povos indígenas como os Marubo, Kanamari, Korubo e outras tribos de contato mais recente. E em um momento percebeu-se a necessidade de facilitar a comunicação entre os dois mundos.
A língua escolhida para a tradução da Constituição foi o nheengatu, "uma espécie de esperanto da Amazônia, nascida das experiências das populações indígenas, e capaz de dialogar com o português, da qual têm várias palavras mútuas". Um "italiano da selva por seu som doce e a riqueza vocal", segundo Lucchesi. Um idioma pelo qual, nos anos 1800, se apaixonou o explorador borgotarese Ermanno Stradelli, que lhe dedicou um precioso vocabulário enciclopédico.
A apresentação do projeto, no qual trabalham 15 tradutores, um grupo de especialistas linguísticos, e uma consulta jurídica do CNJ disponível 24 horas por dia, está previsto entre agosto e setembro, em São Gabriel da Cachoeira, na Amazônia, onde o nheengatu é uma língua oficial, falada ainda de forma difusa.
O documento será depois conservado na Biblioteca Nacional, como "memória" do país. E, ao lado desse projeto, outros estão florescendo. O CNJ, nos últimos meses, já traduziu o regulamento penal para audiências de custódia em 15 línguas. Enquanto isso, no Mato Grosso, trabalha-se na tradução, em várias línguas locais, como da Lei Maria da Penha.
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